1. Consumo do celular
Quem acompanha o tempo que ficou no dispositivo gosta de ver quando o número de horas vai diminuindo. Semana a semana o objetivo é atingido quando se fica a maior parte do dia longe das telas. No entanto, vira e mexe esse número volta a subir. Pode ser um evento específico, uma guerra que acontece do outro lado do mundo e você precisa acompanhar minuto a minuto o que acontece com as pessoas. De certa forma, esse movimento do pêndulo é natural, como em muitos aspectos da vida. Em algumas circunstâncias, o uso do celular é mais frequente e em outros momentos conseguimos ficar mais tempo sem consultar o dispositivo.
No entanto, existem duas questões que precisamos repensar aqui sobre o uso do celular. Primeiro, deixar de lado a tela para não ser indelicado com quem está ao nosso lado.
Imagina se sentar para tomar um café com um amigo e ter sempre a companhia do celular? Paira no ar uma dúvida se você é mais importante do que a tela ou não. Se tiver intimidade vai pedir para a pessoa guardar o celular, mas as possibilidades de conversa, de troca de olhares e tantas outras interações já foram prejudicadas. Na mesa das refeições, o celular jamais deveria aparecer e isso vale para adultos e crianças.
***
Existe um hábito comum para quem acompanha um jornal na televisão ou um jogo de futebol de consultar ao mesmo tempo o celular. Já repararam que a informação que sai da tela grandona parece não ser suficiente? Você precisa ver outros detalhes no celular e fazer uma busca de uma curiosidade que a televisão não citou. Então, pense na pessoa ao lado. Se você tem a companhia de alguém, o que é um privilégio hoje em dia, compartilhe com ela o que você está pesquisando no celular. Isso se chama gentileza. É uma maneira de incluir, mostrar para ela que não existe a possibilidade de que o celular seja mais importante do que a pessoa que está ali ao seu lado. Se quiser, mostre a tela e o resultado da sua pesquisa, tenho certeza que os relacionamentos ficam mais fáceis quando se conversa mais, inclusive sobre o que se faz no celular. Isso não quer dizer que as contas de redes sociais precisam ser compartilhadas. Jamais. Podemos preservar a intimidade e ao mesmo tempo não afastar a pessoa que está por perto.
Crédito
Exemplo para crianças e adolescentes
Sobre esse segundo aspecto do uso do celular, queria contar uma breve história que vi acontecer numa escola do Rio de Janeiro. No último ano da pré-escola, um colégio na Barra da Tijuca faz a noite do pijama na sala de aula. Tudo é organizado para que as crianças possam dormir com segurança com os professores. A sala recebe uma decoração especial, luzes no teto para criar um efeito de estrelas, música, etc. Na porta, uma professora recebe os alunos com um sorriso e o celular na mão. Fica o tempo todo carregando o celular para cima e para baixo, tudo o que a professora faz é com o celular na mão. Qual é a mensagem que fica? Se a professora está assim a criança pensa que também deve segurar um celular a todo instante.
Alguém poderia questionar: é para o caso de uma emergência porque são crianças pequenas ou porque ela precisa registrar tudo e mandar vídeos a cada minuto para uma mãe repassar no frenético grupo de zap. Qualquer justificativa seria razoável, o problema é que a criança vai aprender olhando para essa professora que precisa fazer igual, copiar, repetir esse modelo. Assim, vai se criando uma geração de crianças e adolescentes que chegam nas festinhas com um celular na mão (para registrar tudo, é claro) e pouco aproveitam quando estão preocupadas em mostrar que já entraram para o mundo dos que não vivem sem dispositivo. Vi isso na festinha de 11 anos da minha filha. Uma amiga dela chegou com o celular na mão. Não dava nem para jogar futebol, fazer pintura, comer, beber limonada. A mão estava sempre ocupada com o celular. Se você tem uma criança ou adolescente que precisa levar um celular para a festinha lembre-se de providenciar uma bolsa, uma mochila ou até mesmo a boa e velha (um pouco brega) pochete! Guardar, não ficar mostrando, ter as mãos livres! Nossa, são pequenas atitudes que libertam as nossas crianças da prisão que um celular pode se tornar.
Sugestão de leitura e experiência a ser compartilhada
Uma história simples que em um certo momento nos leva a pensar em tantas coisas inexplicáveis que acontecem na vida. O livro conta os desafios da pequena Irene, filha da costureira, que vai entregar o vestido que a duquesa vai usar no baile. As dificuldades começam quando a menina percebe que a mãe está muito doente e não pode enfrentar a neve até o palácio. Rapidamente, ela se oferece para esse trabalho quase impossível diante de uma nevasca. William Steig descreve com perfeição os galhos das árvores que se quebram diante da menina com a força do vento e todas as outras condições adversas que Irene vai enfrentar. O problema é que no meio do livro a ventania é tão forte que a caixa se rasga e o vestido sai voando. É nesta página que tem a frase mais emblemática do livro que vem no pensamento da menina:
How could anything so terribly wrong be allowed to happen?
Imagino que todo adulto já se perguntou isso diante de uma doença grave, uma morte, uma guerra sem fim, uma tragédia. Como é possível que algo tão ruim assim seja permitido que aconteça? Na cabeça de uma criança, o mal não deveria ser permitido, ainda mais diante de uma menina que está se esforçando tanto para fazer uma coisa boa. Ainda assim, leiam este livro para as crianças a partir dos 6 anos, porque Irene não vai desistir e vai até o palácio mesmo que seja carregando a caixa vazia para explicar tudo o que aconteceu. Como será o fim do livro? O vestido chega em tempo? Adianto logo que o mais fascinante é percorrer esse caminho de Irene, refazer com as crianças as perguntas que surgem na cabeça da menina. Infelizmente, esse livro não tem tradução para o português. Amanhã vai ter newsletter especial sobre outros três livros do Steig que já foram traduzidos para o português.
Um pouco mais sobre quem escreve
Para quem ainda não segue o instagram @maislivrosmenostelas aproveito para contar um pouco mais sobre a minha trajetória. Tenho 40 anos, sou jornalista casada com jornalista e tenho 3 crianças em casa: Laura, Miguel e Cecilia. Trabalhei em jornal, site, rádio e televisão. Na GloboNews, fui produtora e editora por 14 anos. A leitura para as crianças se tornou uma prioridade quando percebi que as telas poderiam atrapalhar esse processo. Por isso, comecei a pesquisar sobre esse tema. Hoje, já consigo reunir uma série de fundamentos sobre o assunto e tenho ajudado diversas crianças no desenvolvimento da leitura. O primeiro passo para quem tem uma criança em casa é lembrar da recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria. Até 24 meses (2 anos) zero telas. Ou seja, nada de celular, televisão, tablet, computador. É possível. Para isso acontecer, o adulto também deve evitar telas perto das crianças e criar o hábito de deixar o celular mais afastado. Quem tem um dispositivo por perto vai acabar consultando, afinal, hoje é muito mais fácil abrir o google (ou falar com a Alexa) para descobrir a capital de um país do que buscar em enciclopédias, livros, dicionários, etc.